segunda-feira, 26 de outubro de 2015

#26 Você esquecerá de se lembrar dela...


Quando chegar o momento certo, você acordará e seu primeiro pensamento não será ela - surpreendentemente, não será ela até o fim do dia, pelo resto dos seus dias. Seus olhos não acordarão inchados e não terá o ímpeto de abrir a gaveta do criado-mudo para olhar a foto dela. Em seguida, pela primeira vez depois de muito tempo, você conseguirá sentir o calor do sol sobre sua pele - prestará atenção em si mesmo.




Ao sair da cama, você fará questão de colocar primeiramente o pé direito no chão e, ensaiando uma coreografia, irá se dirigir ao banheiro cantarolando uma música antiga, não sem antes parar em frente ao espelho, do qual tanto fugira nos últimos tempos. Seguro de si, voltará a se achar bonito, a gostar do reflexo que vê - terá então retomado a jornada ao encontro de si mesmo, de quem havia se perdido.




Em seguida, você vai se sentar à mesa do café e olhará sorrindo nos olhos de sua mãe e de seu pai, que, espantados, constatarão que o filho, daquela vez, tinha realmente acordado e saído inteiro da cama. Conversarão sobre banalidades e até falarão da vida alheia, maldosamente, rindo juntos, com cumplicidade sincera. Apesar do nó na garganta, seus pais serão fortes o bastante para não deixar transbordar em lágrimas toda a felicidade que mal conseguem conter dentro de si.


Chegando ao trabalho, você sustentará o olhar, cumprimentará os colegas com voz viva e eles poderão enfim sentir sua presença. O tempo não se arrastará, suas tarefas não o chatearão e conseguirá prender a atenção ao que é útil. Você voltará a ser gentil, a perceber-se como parte de um todo, até mesmo rirá quando derramar café na calça de trabalho nova. À hora do almoço, sentirá fome de fato, quererá comida de verdade e sentirá os sabores dos alimentos, como há muito já esquecera.



À tarde, voltando para casa, olhará à sua volta, no trânsito, e poderá perceber os olhares de outras mulheres, sentindo o calor subindo-lhe as faces ruborizadas. Não se lembrará dos fones de ouvido e redescobrirá os sons da vida ao redor, sentindo-se parte daquilo tudo. Lá fora e cá dentro de si, o mundo urgirá - as cores das roupas, do céu e dos outdoors como que se lhe ofuscavam a vista até então - seus sentidos, dormentes há tempos, aguçarão novas compreensões de mundo. Você voltará a aprender.




No fim de tarde, porque terá voltado a fazer parte do mundo, será chamado pelos amigos para uma cervejinha e, sem hesitar, dirá sim - um sim a que vinha prontamente se negando. Você se divertirá, beberá, inteirando-se da vida sem ela, sem a sombra dela, sem ao menos mencioná-la. Espontaneamente, conseguirá saber da vida que corre fora de si, sendo capaz de ouvir e de ver outra claramente, flertando sorrateiramente e se esquecendo de se esquecer dos amigos, daqueles que o amam de forma transparente.




Ao anoitecer, enquanto toma um banho demorado, você se tocará e se redescobrirá sentindo prazer sem ter que pensar nela, sem dela precisar - dela nada se fará presente naquele íntimo e libertador instante de gozo -, assistirá um filme no TNT, navegará pela internet, rirá com os memes ridículos, chorará com os vídeos apelativos, ficará revoltado, claro, com os posts políticos. Aceitará vários convites e trocará mensagens com novas e antigas mulheres, pois então já será alguém que voltou ao mundo, um homem digno de ser cortejado e desejado. Mesmo sem se dar conta, você estará pronto para amar de novo.



À noite, ao se deitar, você se sentirá confortável como nunca e o sono não mais lhe escapará. Rapidamente irá adormecer, um sono renovador, que lhe trará um amanhecer cheio de sonhos e de esperanças, porque de fato você nunca foi merecedor das punições com que afligia a si próprio. Ali deitado, você estará inteiro, pleno, bastando-se por si só, como tinha de ser. E então você já terá se libertado dela e passará a se entregar às surpresas que a vida lhe tem reservado. Assim, quantas vezes forem necessárias, voltará a se apaixonar, a encontrar a mulher de sua vida, para viverem felizes no tempo certo que o amor sempre tem, afinal, somos inesgotáveis em nossa capacidade de nos reconstruirmos, enquanto vida houver.

Acredite: você se esquecerá de se lembrar dela.

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